quinta-feira, 15 de maio de 2008

1968 SEM NOSTALGIA


Cartaz da peça teatral Qualé,meu? sobre o movimento de 1968 montada e apresentada na cidade de São Paulo em 1980 - No elenco José de Abreu, Jair Alves, Ecila Pedroso, Paulo Rocha e Nara Keiserman.



O experimentado jornalista, Paulo Moreira Leite, escreveu em seu BLOG, diário, um pequeno texto, convidando seus leitores para discutir o tema, acima. Dentre os que se manifestaram, um deles chamou nossa atenção, não só pela riqueza de informação, mas, sobretudo pelo depoimento de um participante desse movimento, em outro país. Trata-se de Andréa Lombardi, italiano, vivendo há mais de 25 anos no Brasil, atualmente lecionando literatura italiana, na UFRJ - USP. Pela contundência de seu testemunho, julgamos indispensável reproduzir e promover a leitura desse texto. Seguem suas observações:

É tentador, Paulo, comentar seu comentário, sobre o ano de 1968 (mesmo que seja uma comemoração). Eu, como você sabe, sou estrangeiro (há um quarto de século, vivo aqui nesse Brasil). Fui preso, em 05 de Maio de 1968, não aqui, na Itália, naquela democrática Itália de então, que hoje tende a se tornar um regime midiático, de uma direita bastante corrupta.

Não, não existe o "68", existem vários 68`s, pois tantos são os pontos de vista. Mas, há um que em minha opinião é o mais importante: 1968, quando você tinha 15 anos e eu 17 (poderia ser seu pai, não poderia?) Na visão da época, eu era mais velho, muito mais velho! O ano de 1968 foi o primeiro movimento, globalizado, que antecipou a Internet e todos os demais movimentos que tivemos (por enquanto, somente movimentos de informação). Pois, em 1968 nós éramos milhões, em Roma (minha cidade, antes que esse último, produto do Berlusconi, e o neofascismo ganhassem a eleição para Prefeito), milhões em Berlim, em Paris, na cidade do México, e aqui no Brasil, também, embora durante a ditadura.
Também havia milhares em Praga e em Varsóvia. Era já um movimento globalizado, foi o primeiro movimento que atingia vários países, ao mesmo tempo. Compare 1968 com o que acontece hoje: quantos protestos, quantas vozes críticas. É verdade que existia muito esquematismo, sim, naquela época, muito modismo, no corte dos cabelos, na roupa alternativa, na música, em tudo (que viva aquela moda!). Dizia Pasolini (o diretor de cinema e escritor), que estava se preparando um certo fascismo da sociedade de consumo. Guy Débord falava da sociedade do espetáculo (na época eu não conhecia Débord, o grande situacionista francês e ex-dadaísta). Uma sociedade onde tudo é espetáculo, venda e consumo, onde não há mais espaço para crítica e leitura aprofundadas.



Paulo, hoje eu dou aula, após 40 anos, de Literatura Italiana (na UFRJ, USP) e sabe o que eu percebo? Que poucos, muito poucos, estão a fim de uma leitura crítica, aprofundada, radical, de uma leitura fora dos esquemas e da tradição, uma leitura ética ou uma ética da leitura, onde nós temos um compromisso de ler os textos e o mundo e, depois, na contramão, tentar uma leitura ao avesso, uma leitura em diagonal, uma leitura nova, criativa, crítica, produtiva, viva. É somente este tipo de leitura que pode reverter nossa posição na sociedade.
Paulo, a sociedade, hoje, está dormindo, está dopada (muito prozak, muitos antidepressivos), ela está doente. Curioso, que a gente acorda para perceber a loucura que nos cerca, somente a cada caso de menino arrastado, de menina jogada, quando a loucura é cotidiana, com a violência doméstica a mil. Digo isso, Paulo, sabendo que a doença não está somente no Brasil, está ainda mais forte nos países da Europa, na velha Europa. Trata-se do velho continente, que está rico, aparentemente poderoso, repleto de novos produtos, mas que está mais doente ainda, cheio de angústias, contra os imigrantes e pela situação econômica, por não saber como pagar a parcela de um empréstimo contraído. A verdade, Paulo (isso não sabíamos, em 1968) é que o progresso traz produtos e tecnologia, mas traz também, obrigatoriamente, neurose e medos, angústia e pânico (a síndrome de estar cercado, nos bairros chiques, nos condomínios, algo que conhecemos bem aqui, nas metrópoles do Brasil).
O ano de 1968 foi um momento e um MOVIMENTO. Como identificar um movimento e um momento, nesse movimento? Impossível, é como fotografar algo que cai e dizer "a queda é isso!". 1968 foi o eclodir de uma série de problemas: autoritarismo, nova sociedade de consumo, abertura da Escola e Universidade de massa, multidões de novos estudantes, que questionavam, que discutiam, que não eram ouvidos pelos professores. Com os Beatles (torcida de massa), depois a Revolução Cultural Chinesa, nós não concordamos. Eu era marxista-leninista, na época, não "maoísta", mesmo assim, defendo ainda a frase "Rebelar-se, é justo". Ainda penso que se rebelar é justo (embora não pense mais positivamente sobre o Mao). Mas, naquela época, Mao era como o Che, como Ginsberg, como a guerra do Vietnam, ou seja, tudo confluía e a gente não tinha nem tempo, nem vontade de separar.
Cuba? Eu fui um dos poucos que, no dia 23 de agosto de 1968 (você se lembra daquele dia?) manifestou contra a embaixada cubana, pelo apoio que deram à invasão soviética, um ato de graça, esse apoio, não precisava. Mostraram para mim e alguns outros que Cuba queria entrar, ou tinha entrado, na órbita da União Soviética, um país totalitário, onde não havia nada de socialismo. Eu nunca perdoei, dos cubanos, essa dependência (mas, quem era eu?) e também o Che, discordando, foi-se embora para a Bolívia. O Che, porém, nunca denunciou a influência dos soviéticos, uma influência negativa que para mim, à época (e ainda hoje) não era melhor do que qualquer ditadura da direita.
1968. Não, não é simples livrar-se dessa sombra que percorria o mundo. Um verdadeiro fantasma que rondava aquele mundo. Hoje, não há mais fantasmas, pois hoje é o nosso mundo que parece, infelizmente, um fantasma, um mundo sem alma, sem vida. Você não acha, Paulo?
Não acha? Um abraço,
Andrea



Link do blog de Paulo Moreira Leite - http://ultimosegundo.ig.com.br/opiniao/paulomoreiraleite

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